sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Edmundo Pedro, O Resistente. (1a parte)

Por Raquel Brito e Tiago Salgueiro Mendes.

Hoje temos a honra de vos trazer uma entrevista realizada a Edmundo Pedro. Conhecido por uma vida entregue à luta antifascista e pelos largos anos que esteve preso pelas suas escolhas ideológicas, Edmundo Pedro é um exemplo e uma fonte de inspiração. Desde jovem abraçou as causas mais nobres pelas quais lutou com a determinação e coragem que o caracterizam.
Dar Força à Juventude: Aos treze anos o camarada iniciou a sua actividade política. Em que medida a sua família o influenciou?
Edmundo Pedro: Influenciou muito. Os meus pais em 1931 tinham-se tornado funcionários do Partido Comunista. O meu pai veio para Lisboa servir o partido, trabalhava na sua sede principal. Antes disso, o meu pai esteve na Guiné e eu acompanhei o trajecto dele com muito interesse. Ainda era miúdo mas já sabia que ele estava ali ao serviço de uma causa… uma causa que era a liberdade e ele estava disposto a sacrificar-se por ela. Tudo isso teve muita influência na minha opção ideológica.
DFJ: Que valores o moviam na altura?
EP: Queria uma vida melhor para todos, de igualdade, fraternidade. Queria um Mundo mais justo. Era um miúdo muito observador que via as injustiças deste Mundo e desde cedo comecei a sofrer com a experiência dos meus pais. Comecei a trabalhar aos treze anos… desempenhava tarefas pesadas. Portanto, comecei a sentir a exploração desde novo. Tudo isso me ajudou a consciencializar e perceber que o Mundo tinha profundas injustiças. Fez nascer desde cedo em mim, a necessidade de caminhar com aqueles que combatiam essas injustiças.
DFJ: A luta por estes valores levou-o variadíssimas vezes à prisão. Durante o tempo em que esteve na prisão alguma vez teve vontade de baixar os braços?
EP: Nunca. Isso é um traço fundamental do meu carácter. Eu não sou teimoso, sou determinado. Ainda hoje luto por tudo em que acredito com as forças que me restam. Continuo a estar presente nas causas que realmente me fazem mover e que realmente dão sentido à minha vida, apesar de fazer 90 anos este ano. Apesar de tudo o que passei não me sinto com essa idade. Estou envolvido por exemplo, neste momento, no movimento “não apaguem a memória”.





DFJ: Recentemente voltou ao Tarrafal. Como lidou com as memórias de uma juventude oferecida à luta antifascista?
EP: Vou recordando, sempre com saudade, aqueles meus companheiros que lá morreram. Alguns deles a quem eu estava profundamente ligado. Alguns muito jovens.Um dos primeiros a morrer foi o Alcobia, tinha 20 anos, e também o Tobias, mais ou menos com a mesma idade. Não posso deixar de me lembrar de todos os que lá estiveram. Eram todos muitos jovens, pouco mais velhos que eu. Morreram dispostos a sacrificar-se por um Mundo melhor.Há quatro mortes que me marcaram profundamente e que eu acompanhei de muito perto. Uma delas foi a morte do Bento Gonçalves. Era um homem excepcional, diferente do Cunhal, era de uma grande simplicidade, apesar das divergências de pensamento que hoje tenho com ele. Morreu mesmo ao meu lado.O Caldeira, também dirigente do PCP e um excelente decorador, demorou oito dias a morrer. Era ele que nos dava coragem para continuar porque sabia que ia morrer.Lembro-me da morte do Ernesto Ribeiro, que tinha sido preso com o meu pai, e que percebeu que ia morrer a partir do momento em que deixou de urinar, o que era um sintoma de que a morte era inevitável. Um pouco antes de morrer lamentou-se só de uma coisa: de que nós íamos chegar “ao tal socialismo” e que ele ia morrer sem chegar lá.Recordo-me ainda do Tobias que teve uma morte espantosa. Não falava, via-se que estava conformado com a morte. Assistimos à entrada dele no “além”. Não dizia nada e nós também não sabíamos o que havíamos de lhe dizer. Pouco antes de entrar em coma e de morrer sorriu para nós. Era uma mensagem.Isto tudo são coisas que nunca mais me vou esquecer na vida. Portanto quando eu vou ao Tarrafal é para prestar uma homenagem a esses meus colegas. Emociono-me sempre. Ainda no ano passado lá estive duas vezes, porque entendo que o Tarrafal está abandonado e que a sua ideia tem sido esquecida. A sua memória foi apropriada pelo PCP, porque quando se fala em Tarrafal as pessoas associam sempre ao PCP. Mas não é bem assim, pois havia lá gente de várias tendências e nós PS fomos um pouco culpados desta situação: abandonamos um pouco esta causa e o PCP ocupou-a oportunistamente. E por isso envolvi-me no movimento “não apaguem a memória”.
DFJ: O movimento cívico “não apaguem a memória” tem como objectivo manter presente na memória de todos a luta pela liberdade de antes de Abril e a identidade de todos os que por ela se sacrificaram. Fale-nos um pouco desse movimento.

EP:
É um movimento tendente a não apagar a memória da resistência antifascista. A memória antifascista é acarinhada em todos os países do Mundo, fazendo parte da cultura ocidental. Nós não podemos ficar a margem disto. A cultura da resistência é uma cultura contra a violência sobre as pessoas, contra a ausência de Direitos Humanos. O Salazar, ao contrário do que boa parte da Direita hoje pretende fazer passar, foi um fascista à sua maneira, apesar de não ter sido como Hitler. Não havia em Portugal campos de extermínio, mas o Tarrafal foi um campo de concentração com todas as valências, menos a do extermínio presente nos campos de concentração Nazis. Havia trabalho obrigatório, não era possível comunicar com o exterior, a ausência de notícias, a ausência de visitas. Era um isolamento total, mesmo em relação à família que nunca mais a vimos. Durante nove anos não vi a minha família. Tive vários anos sem tirar uma fotografia. Tirei uma fotografia aos 16 anos quando saí da prisão de Peniche e só voltei a tirar outra quando saí do Tarrafal. Isto é campo de concentração.O Tarrafal foi um crime contra a Humanidade. Morreram lá mais de três dezenas de pessoas, quase todos jovens. Outras tantas dezenas morreram quando de lá saíram. Eu vim tuberculoso.
O movimento “não apaguem a memória” luta para que o sacrifício dos resistentes antifascistas não seja esquecido e para que este sacrifício seja inspirador em relação ao futuro, de modo a prevenir situações semelhantes. Este movimento serve ainda para lembrar a necessidade de estar sempre atento aos perigos que se perfilam no horizonte.O movimento tem como objectivo preservar a memória do Tarrafal e desenvolver lá um Museu. Também pretendemos organizar um colóquio internacional sobre campos de concentração. Em Portugal, pretendemos transformar o Aljube em Museu da Resistência e da Liberdade. Há um Museu da Resistência em Peniche, que é um Museu do PCP, muito unilateral e sectário. Nós não queremos nada disso. Nós queremos um Museu onde esteja representada toda a resistência, incluindo o PCP. Queremos igualmente fazer um roteiro da resistência em Lisboa, que se irá chamar o “Roteiro da Memória”.

DFJ: Em declarações proferidas pelo camarada à TSF aquando da apresentação do seu livro “Memórias – Um combate pela liberdade”, afirmou que a luta pela liberdade tem que ser permanente. Considera que a liberdade não é um dado adquirido?
EP:
A Liberdade nunca está assegurada. Os jovens têm que estar muito atentos em relação ao futuro. Os perigos são permanentes, porque as forças da reacção e os grandes interesses não desistem. Tenho reflectido muito sobre a experiência do Chile, do comportamento que o partido comunista e do partido socialista chilenos que foi desastroso devido aos excessos que cometeram. Este comportamento conduziu ao desastre que se deu em 1973.Percebi mesmo antes do 25 de Abril, apesar da minha formação marxista-leninista, que a Democracia Política e a Liberdade eram fundamentais e que não valia a pena fazer reformas sem liberdade política. Foi isso que me levou a aderir ao PS: a ideia de Liberdade.
DFJ: O que é para si o património cultural de esquerda?

EP:
O que existe no PS é o que eu chamo uma cultura socialista que neste momento está a ser destruída. Essa destruição vem de cima, dos dirigentes que não têm essa cultura, que não têm passado nenhum, que não têm essa tradição. Há um profundo desrespeito pela grande cultura socialista que vem do século XIX. Vem da fundação do movimento operário com Marx e Engels. Não esqueço que Marx foi uma grande figura na História da humanidade. Foi um grande pensador que imaginou a luta por um Mundo melhor através de uma teoria que se revelou falsa. São figuras que pertencem à História. O PS era um partido de operários, mas a estratificação social alterou-se substancialmente. Hoje em dia, as novas tecnologias têm um papel central, emergindo uma sociedade de informação onde o poder social dos quadros é cada vez maior e com essa mudança social o poder político tem necessariamente que ser diferente. Portanto, o Partido Socialista tem uma conquista social diferente. Isto é uma coisa, outra diferente é a perda das referências e a perda da tal cultura socialista, coisa que nunca se viu em partido nenhum. Tenho estado em vários congressos em Espanha, muitos deles com o Dr. Mário Soares e também no âmbito da Internacional Socialista, e ali toda a gente se trata por “compañero”. Hoje em dia no PS ninguém se trata por camarada. Aqui todos se tratam por engenheiro ou doutor. Ora, eu vejo isto com desgosto, porque é a perda de uma tradição que tem muita importância e é também a perda de um certo sentido de igualdade e solidariedade entre nós e de um certo igualitarismo de camaradas e de missão. É um valor muito importante que se anda a perder. Isto parece uma coisa muito insignificante mas é um sintoma.Este erro de protelar o partido deve ser, no meu entender, a consciência crítica do partido. Se o PS for simplesmente seguidista perde-se esta consciência crítica e não se é capaz de despertar os militantes no sentido da análise crítica, ficando o partido sem alma, sem vida e sem existência própria. O partido transformou-se pouco a pouco num aparelho para justificar os cargos políticos da direcção nacional. A direcção nacional não se preocupa minimamente nem com as concelhias, nem com as federações, nem com nada, porque acaba por ser gente que já lá está em cima e que acha que não precisa do resto para nada. Isto preocupa-me muito e têm que ser vocês os jovens a preocuparem-se também.

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